Manifesto de um egoísta

Você por aqui???” — ele disse assim que me viu. Era um dia de semana, chovia fininho em São Paulo, os professores estaduais organizaram uma greve por melhores salários e outras coisas, fui lá apoiar. Esse ex-colega de faculdade quase trombou em mim durante a passeata, e ficou surpreso por que eu já ganhava bem e nunca fui fã de altruísmo. Pra mim, cada um tem que se virar, fazer o melhor que pode de suas oportunidades e os outros que se danem. Depois da faculdade, fui buscar uma carreira que me garantisse um bom salário, nada mais natural. E nunca mais nos vimos. “Você me conhece. Se estou aqui, não é por vocês” — respondi — “é por mim mesmo.”

É isso mesmo. Fui àquela passeata porque me lembrei de todas as vezes em que alguém passou de carro com o som bombando algum desses barulhos que chamam de música, e eu reclamei. Reclamei e reclamo, mesmo. Falta de respeito, pô. Falta de educação. Fui porque já não agüento mais ver tanta placa com erro de Português, tanta furação de fila, tanta idiotice na TV, tanta gente comendo sushi de garfo no restaurante por quilo. Fui porque se esse povo saísse da escola realmente sabendo alguma coisa, estariam todos em bons empregos, ou então abrindo empresas, promovendo o crescimento do país, essas coisas. É por isso que eu gostaria que os professores do ensino público fossem os mais bem pagos do mundo. Não, não acho que isso faria com que os maus professores fossem melhores, mas certamente faria com que os melhores professores quisessem trabalhar no ensino público. Precisamos dos melhores professores, esses que sabem motivar até uma lesma a saltar de pára-quedas. E nossa elite antipatriota nunca vai mover um dedo pra isso.

Por muito tempo, selecionamos os melhores alunos para as melhores escolas, pensando que os piores alunos desapareceriam sem deixar traços. Não funcionou: eles continuaram existindo. Selecionamos os melhores empregados para os melhores salários, sabendo que apenas os melhores salários permitem um lugar mais ou menos decente pra viver, achando que aqueles que não foram selecionados desapareceriam junto com os piores alunos. Também não funcionou. Ao invés de desaparecer, eles foram se acumulando a cada processo seletivo, os quais, aliás, foram se tornando cada vez mais seletivos.

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Essas pessoas foram se acumulando em morros ou vales na cidade, e deixamos que ficassem lá, sem internet, TV a cabo, água encanada nem rede de esgoto, achando que nessas condições eles iam acabar desaparecendo. Também não funcionou, eles foram ficando cada vez mais resistentes e agressivos, e cada vez mais numerosos. Daí surgiram os grupos de extermínio, esses que tentam acabar com a miséria matando os miseráveis. Uma idéia no mínimo tão ingênua quanto acabar com uma infestação de baratas só com chineladas. Conscientes ou não, fingimos que não vimos, e também não funcionou.

É muito desperdício de população, isso de manter milhões e milhões de miseráveis ocupando-os com tarefas que máquinas poderiam cumprir, fazendo-os viver nas condições mais precárias e consumir o mínimo possível. É urgente transformar esse pessoal em consumidores, que sejam construídos mais shopping-centers, fábricas de biscoito recheado e de telefone celular! Que dupliquem a China pra fornecer toda a parafernália eletrônica e todas as meias que esse povo vai começar a usar! Só com os impostos recolhidos pelo transporte de toda essa mercadoria, poderíamos pagar a construção de mais portos, aeroportos, terminais de ônibus, hospitais… E nem a Nestlé daria conta de engordar todos esses corpinhos, imagine só quantas oportunidades para novas concorrências! Façamos bom uso do capitalismo, esse que nos dá tanto trabalho defender.  O que perderíamos com isso? Deixemos de ser bobos, esqueçamos esse ciuminho de classe média, ele só nos mantém cercados de uma horda de mal-educados que está se tornando cada vez mais desagradável.

1385838_533001490122160_1452199459_nTeremos que nos adaptar, com certeza. Principalmente porque teremos que buscar outras formas de nos sentir superiores. Sim, até agora tem sido fácil se sentir superior, basta olhar para as placas que esse povinho escreve com tinta e pincel, e a alegria que eles sentem quando conseguem comer um pedaço de carne ou ir à praia. Tiramos fotos e compartilhamos com os amigos, nos divertimos com a inferioridade deles. Mas isso já me cansou, enjoei de me sentir superior assim, sou diferenciado. Preciso que eles aprendam a ouvir música clássica, analisar escultura, conhecer a diferença entre um grand cru de Burgonha e um bordô qualquer só de olhar pra taça, quero poder discutir Kandinsky com o taxista. Os suíços podem, por que eu não posso?

Passemos a evolução social a outro nível: a classe média que vira elite. Que sejamos nós a criar todas as fábricas e lojas que esses recém-chegados à classe média vão ocupar. Paremos de ouvir os Civita e os Marinho. Já deu; já vimos que o que eles propõem só funciona pra protegê-los de nós, e não serve pra nos proteger dessa horda com que agora dividimos os bancos da classe econômica nos aviões. Essas e outras famílias que têm o controle da mídia nunca andam a pé pelas ruas e estão bem protegidas de seqüestros-relâmpago e assaltos. Esses riscos, somos nós que corremos todos os dias, por termos acreditado nelas todo esse tempo.

Chegou a hora de virar o jogo. Ajudemos os pobres a serem menos pobres, e como já estamos acostumados a pisar neles, subamos mais alto quando eles subirem.

Eram nossas as aposentadorias roubadas para a construção de Brasília, eram nossos os livros de capa vermelha que queimaram nos anos 70, e eram nossas as poupanças confiscadas pelo governo Fernando Collor. Fomos nós que pagamos a construção das estradas que hoje pagamos pra usar. O pacto social foi rompido seguidas vezes, reclamamos, mas não fizemos nada. Agora reclamamos porque quebram vidraças de bancos? Ora, o único efeito de uma vidraça quebrada é o susto no pessoal do banco, que aliás pertence à classe média ou à mais baixa. As vidraças são cobertas pelas seguradoras, e os vândalos as atacam porque buscam atos simbólicos. Temos motivos suficientes pra usar nossa superioridade intelectual e indicar a eles os verdadeiros alvos a atacar, que poderiam ser, sei lá eu, heliportos, restaurantes de luxo. De qualquer forma, em grandes cidades, o que não faltam são alvos desse tipo, e com endereço conhecido. Nossa obediência deixou de nos ajudar desde que os grandes lucros deixaram de depender da produção. Poderíamos virar o jogo usando os vândalos como arma contra a elite, já que ela tem nos usado como escudo contra eles. Assim que conseguirmos nos livrar da nossa apatia.

E não se esqueça: não é por eles, é por nós mesmos.

2 Comentários

  1. Pois é, este texto foi o resultado de um pequeno trabalho de interpretação reaça. Não fui tão longe quanto Antônio Prata ( http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2013/11/1366185-guinada-a-direita.shtml ) — também porque não sou profissional — e além disso a idéia não era fazer ironia, e sim mostrar às pessoas que a população é a maior riqueza de um país, e que qualquer argumento contrário está favorecendo um pequeno grupo de privilegiados. Sempre. (Quem não concorda que escreva aqui, eu nunca deletei um comentário).

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